domingo, 3 de julho de 2011
Não mascarar a morte
Devemos viver bem, para morrer bem
Todos passamos ou vamos passar pela experiência da perda de um ente querido, do mesmo jeito que todos sabemos que um dia morreremos.
A vida não nos pertence, assim como os nossos entes queridos não nos pertencem. Somos de Deus. Estamos aqui de passagem; não temos morada definitiva aqui, mas caminhamos para a Jerusalém celeste. O céu é a nossa pátria.
A misericórdia infinita de Deus reserva um lugar para cada um de nós. Ninguém deve temer o dia do Juízo Final. Para muitos, este será o grande momento de redenção perante o mundo, já que foram vítimas de calúnias, injustiças, mentiras e sofrimentos. O Juízo será o momento histórico de reabilitação. Nunca deveríamos ter medo de nos encontrar com o Juiz verdadeiro, que é Deus, porque Ele não é um juiz que me julga: Ele acima de tudo é um juiz que me ama.
Nós experimentamos a morte como herança do pecado. A morte é obra-prima do demónio, conforme está no livro de Sabedoria 2; foi por inveja dele que a morte entrou no mundo, e por isso, sofremos tanto. Também por isso é fundamental redescobrirmos o sentido cristão da morte. Sem isso é quase impossível a cura dos nossos traumas.
O ser humano foi criado para a imortalidade, por isso, não gosta de reflectir e muito menos conversar sobre a morte, o que não nos livra dela. Muito mais prudente é pensar no assunto, já que a nossa alma é imortal. Pensar na morte ajuda-nos a preparar melhor para esse grande e inevitável dia. Todos iremos morrer, e logo depois da morte vem o Juízo.
"A morte é terrível para o pecador, mas não para o justo". Pois "o justo, na morte, é como uma árvore que tomba para produzir, na eternidade, frutos ainda mais belos; o pecador é a árvore cortada na raiz para ser atirada ao fogo, conforme ensina a Palavra: “Toda a árvore que não produzir bons frutos será cortada e lançada ao fogo” (Mt 3,10).
A alma fixa-se no estado em que se encontra. Não escolhemos a hora da morte – mas escolhemos o modo de vida (ou de morte) da nossa alma.
Todos somos predestinados ao Céu – Deus quer a salvação de todos.
Mas Ele não nos obriga a querer o mesmo.
Como “não sabemos o dia nem a hora”, a sabedoria consiste em estar sempre preparados. Somos todos julgados após a morte. É o juízo particular. Penetrando na eternidade, apresentamo-nos diante do rei – e a nossa veste deve ser branca (Mt 22, 1s). Por isso devemos viver bem para morrer bem. Assim, a morte não nos apavora. Em vez de medo, há confiança.
AS PORTAS DA MORTE
Já que somos cristãos, já que sabemos que havemos de morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da mortalidade: tratemos desta vida como mortais, da outra como imortais.
Pode haver loucura mais rematada, pode haver cegueira mais cega, que empregar-me na vida que há-de acabar, e não tratar da vida que há-de durar para sempre?
Cansar-me, matar-me pelo que forçosamente hei-de deixar, e do que hei-de lograr ou perder para sempre não fazer nenhum caso?
Tanto medo, tanto receio da morte temporal, e da eterna nenhum temor?
Mortos, mortos, desenganai estes vivos!
Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos, quando entrastes e saístes pelas portas da morte.
A morte tem duas portas:
uma porta de vidro, por onde se sai da vida; outra porta de diamante, por onde se entra na eternidade.
Entre estas duas portas se acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem parar, nem fugir, nem adiar, senão entrar para onde não sabe, e para sempre.
Oh que transe tão apertado! Oh que passo tão estreito! Oh que momento tão terrível!
Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais terrível é a morte.
Disse bem, mas não entendeu o que disse.
Não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa.
Não é terrível a porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra.
Se olhais para cima, uma escada que chega até ao céu; se olhais para baixo, um precipício que vai parar no inferno. E isto incerto!
Mostrou Deus uma visão ao profeta Amós, (que era um homem do campo), e perguntou-lhe o que via.
Respondeu o profeta:
- Senhor, vejo uma vara comprida e farpada, com que os rústicos alcançamos a fruta e a colhemos das árvores.
Pois essa vara que vês, – diz Deus, – é a morte.
Todo esse mapa do mundo é um pomar. As árvores, umas altas, outras baixas, são as diversas gerações e famílias.
Os frutos, uns mais maduros, outros menos, são os homens. A vara, que alcança os ramos mais levantados, é a morte: colhe uns e deixa os outros.
Ah, Senhor, que essa é a morte como havia de ser, e não como é!
Quem entra a colher num pomar, passa pelos pomos verdes e colhe os maduros. Mas a morte não faz assim; deixa os maduros e colhe os verdes.
E já se colhera só os frutos verdes, colhera frutos:
mas a queixa minha é, que deixa de colher os frutos e colhe as flores.
Alerta, flores, que a Primavera da vida é o Outono da morte! A foice segadora que traz na mão, instrumento é do Agosto e não do Abril.
Arma-se com ardilosa impropriedade a morte: ameaça as espigas, para que se desacautelem as flores.
António Vieira
Fonte JAM
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