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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

SOBRE A FIDELIDADE


Uma das palavras-chave do nosso quotidiano é a discriminação ou a não discriminação. A preocupação quase obsessiva pelo tema tem levado a subtis distinções, e assim adjectiva-se a discriminação ou não discriminação que pode ser positiva ou negativa. No princípio esta linguagem traduzia uma preocupação legítima de justiça, ou seja, que as pessoas fossem tratadas por igual, tendo em conta, como base fundamental, a sua dignidade no quadro de uma sociedade democrática num Estado de Direito. Sabemos, porém, que a convivência social é mais complexa e nem sempre está de acordo com os princípios; nos últimos tempos o princípio tem vindo a esvaziar-se, se não mesmo a perverter-se, e falar de discriminação ou não discriminação tem vindo a degenerar para uma simples proposição vazia. Veja-se um exemplo. Li muito recentemente num dos jornais diários que alguém se queixava, porque os licenciados de Bolonha eram discriminados a respeito dos licenciados anteriores a Bolonha. Naturalmente que o discurso enfermava de uma distorção, pois, com a mesma designação, indicam-se realidades académicas diferentes: um licenciado de Bolonha tem três anos de estudo, ao passo que um licenciado antes de Bolonha tinha cinco. O uso do termo discriminação na comparação destas duas situações distorce a realidade e acaba por ser injusta. Não se pode tratar do mesmo modo realidades distintas.

Este modo de falar tem sido transposto também para a linguagem teológica e diz-se, de resto com base nas Escrituras, que Deus não faz acepção de pessoas, e logo se conclui, de um modo semelhante a como se procede com a discriminação, que Deus trata todos por igual. Mas será isso que a expressão quer dizer? Será que Deus procede como as parcas da mitologia grega, entidades míticas representadas cegas com uma tesoura na mão e que cortavam ao acaso o fio da vida?

Se virmos bem, o principio fundamental que as Sagradas Escrituras nos transmitem e pelo qual se narra a relação de Deus com o homem não é o da igualdade ou não-discriminação, mas sim o princípio de predilecção. S. Paulo sentia-se agarrado por Cristo e dizia que Ele amou-me e entregou-se por mim (Gal 2, 20). S. João, o autor do quarto evangelho, apresentasse a si mesmo como o discípulo que Jesus amava. E nos místicos encontramos o testemunho de se sentirem filhos predilectos de Deus. Então, quando a Escritura proclama que Deus não faz acepção de pessoas, está a ensinar-nos que Deus trata cada homem como sendo único e irrepetível e, por isso, é justo, porque dá a cada alma o que lhe compete, não confunde uns com os outros. Os homens não são perante Deus como números; são pessoas, únicas e irrepetíveis, que Ele criou por amor.

Num texto notável do fim da sua vida, dirigindo-se a Timóteo, S. Paulo diz: combati o bom combate, terminei a minha carreira, mantive a fé (2Tim 4,7). Gostava de registar este último ponto: mantive a fé. A fidelidade levada até ao fim, este foi o sentido da vida do apóstolo, esse deve ser também o perfil e o sentido da vida do cristão: aquele que é fiel. Às vezes fico a pensar que se perdeu hoje o sentido da fidelidade e a maior parte das pessoas são como aqueles que, por exemplo no futebol, dizem que não têm nenhuma equipa, porque são pela que ganha. Será que ainda há hoje gente daquela têmpera de quem dizia: antes quebrar do que torcer? Faz falta hoje homens de carácter e às vezes sou levado a pensar que já não há homens. Mesmo na linguagem muitos são os que já não falam no homem, mas sim vagamente no ser humano; como já são poucos os que falam na alma; vivemos infelizmente num mundo sem alma, num mundo desalmado!...

Hoje, numa sociedade tão complexa como a nossa, corremos o risco de pensar, à maneira dos jogos de futebol ou da política, nos outros ou no outro como o adversário, o inimigo. E então pensamos com facilidade que os outros são um perigo para a nossa segurança, os outros que têm ideias políticas, religiosas ou outras diferentes das nossas. Há aqui um erro muito grave e uma distorção da realidade. Nosso Senhor no Pai-nosso ensina-nos a pedir duas coisas muito importantes: que não nos deixe cair na tentação, ou seja, que não estique demasiado a corda da provação de modo a corrermos o risco de pensarmos que Ele já não é nosso Pai, a terrível tentação; e, depois, que nos livre do mal, como se lê nas nossas versões a que estamos habituados a rezar. Mas no grego é mais forte: pois Nosso Senhor não nos ensina a pedir que Deus nos livre do mal – que é muito abstracto, e que pode ser algo que nos prejudique ou nos cause dano, como uma doença ou outra coisa que consideramos negativa para o nosso conforto e bem-estar. Não é disto que Nosso Senhor nos ensina a pedir que Deus Pai nos livre, mas sim do maligno, do tentador, do demónio, Satanás. Este é que é o grande perigo do qual Nosso Senhor nos pede que Deus Pai nos livre. Em comparação com isto, as crises económicas ou outras não são nada!...

Somos chamados a ser como S. Paulo, crentes, fiéis. Os outros que pensam diferente de nós ou que acreditam diferente de nós só representam um perigo para nós, se não tivermos fé, se não formos fiéis, se não tivermos princípios. Se procurássemos viver de acordo com o Evangelho; se fôssemos obedientes à Igreja nossa mãe, como tudo seria diferente. Bastaria viver de acordo com os mandamentos da lei de Deus…

Esta tem sido a força dos mártires, aqueles homens e mulheres que foram fiéis até ao ponto de darem a vida. Por isso, os santos e os mártires são os que mostram o rosto da Igreja, a comunidade daqueles que são fiéis, porque a fidelidade é a prova do amor, da vitória do amor sobre o tempo! Fiéis nas pequeninas coisas, para sermos fiéis nas grandes; por exemplo: sermos fiéis ao domingo, o tempo de Deus e que a Ele pertence; se todos os católicos fossem verdadeiramente fiéis, o processo de secularização do domingo que está em curso, que corre o risco de se tornar um dia vazio, do fato de treino e da coca-cola, não teria sucesso. Mas onde estão esses fiéis?
P. José Jacinto de Farias, scj

Assistente Eclesiástico da Fundação AIS

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